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Regular o carbono é o melhor caminho

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carolina-prolo-1- Regular o carbono é o melhor caminho
carolina-prolo-1- Regular o carbono é o melhor caminho
Ter um ambiente de mercado de carbono baseado em regras claras é o melhor caminho em um momento de crise geopolítica na gestão multilateral do clima Talvez estejamos engatinhando no eixo da história de como os mercados de carbono evoluíram para se tornar um instrumento econômico relevante na nova era de descarbonização das economias. No Brasil, o ano de 2024 será lembrado por ter marcado a sanção da Lei nº 15.042/2024, que criou o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (“SBCE”). Mas na escala internacional também, foi em 2024 que as regras para operacionalizar os instrumentos de mercado de carbono do Acordo de Paris foram acordadas, destravando 9 anos de negociação multilateral para criar novos ativos de carbono internacionais.
Com esse arcabouço legal adotado, os mercados de carbono passam a ser políticas públicas mais concretas, capazes de influenciar as decisões privadas sobre emissões de gases de efeito estufa no nível das organizações e relações comerciais. Não há nenhuma garantia de se e quando esses mercados vão funcionar para a finalidade a que se prestam, e seus efeitos colaterais são incertos. Mas ter um ambiente baseado em regras claras é o melhor caminho em um mundo que já passou dos 1.5ºC de aumento de temperatura e que enfrenta enormes desafios geopolíticos na gestão multilateral da crise climática em tempos de guerras e regimes ultraconservadores.
Há quase 15 anos, quando estudava precificação de carbono em um mestrado em Direito na Universidade de Londres, tive uma discussão com uma colega sobre o que era melhor: mercado ou tributo sobre o carbono? Ela defendia a tributação, posição também de grande parte dos economistas: um tributo sobre as emissões é a forma mais eficiente de precificar o carbono porque, de fato, coloca um preço no carbono (no caso, uma alíquota)! Com um preço de carbono claro, transparente e previsível, cabe ao mercado decidir se prefere pagar o custo ou emitir o carbono.
Já eu simpatizava com a solução do mercado de carbono: um sistema de comércio de emissões (também conhecido como “cap and trade” ou “teto e comércio”), em que há uma quantidade máxima de permissões de emissão de carbono disponibilizada pelo governo, mas em que quem atribui o preço do carbono largamente é o mercado.
Em resumo, o tributo traz mais previsibilidade sobre o preço do carbono, deixando os agentes econômicos livres para decidirem se querem pagar o preço e continuar poluindo; enquanto o sistema de comércio de emissões traz mais previsibilidade sobre os resultados ambientais – com uma limitação clara da poluição permitida -, sendo que o preço é mais incerto.
Eu não tinha conhecimento suficiente de teoria econômica para ir mais longe nessa discussão, mas me apegava a esse resultado ambiental assegurado pelo mercado regulado de carbono: uma política pública que estabelece um teto decrescente de emissões de gases de efeito estufa parece ser algo poderoso.
Anos depois, o Acordo de Paris da ONU instituiu a obrigação de os países signatários terem suas Contribuições Nacionalmente Designadas (NDCs), que são as metas, políticas e medidas quinquenais que o país pretende adotar nos esforços globais de mitigação de emissões de gases de efeito estufa. Embora a obrigação seja de comunicar metas de redução de emissões, nada impede que o país indique sua NDC na forma do orçamento de carbono pretendido, estimando a quantidade total de emissões que o país vai poder gerar em um período de 5 anos, ou seja, o teto de emissões comprometido pelo país (bingo!).
E foi exatamente o que o Brasil fez com a recente NDC submetida em dezembro de 2024, ao indicar que o país pretende chegar a um nível de concentração de gases de efeito estufa em patamares que variam de 1.05 para 0.85 GtCO2 [unidade de medida que representa a quantidade de dióxido de carbono (CO2) emitida, em bilhões de toneladas] e no ano de 2035.
Já que a NDC se compromete com um teto de emissões, parece fazer sentido adotar políticas domésticas que também repliquem tetos de emissão por setor. Daí porque o governo federal articulou-se em torno da lei que instituiu o SBCE.
Esse tipo de instrumento também se alinha muito bem com a lógica de progressividade da NDC. Assim como as NDCs devem ser revisadas a cada 5 anos de forma mais ambiciosa, também o teto do SBCE precisa ser progressivamente reduzido; ou seja, essa disponibilidade de emissões de GEE para os operadores vai sendo gradualmente reduzida. O SBCE já tem embutido no seu desenho um mecanismo de progressividade, embora esse aspecto ainda careça de regulamentação.
Com o seu orçamento de carbono bem definido e seu próprio sistema de comércio de emissões, o Brasil se habilita melhor para participar dos instrumentos de mercado de carbono do Acordo de Paris, que foram desenhados para permitir cooperação entre os países no compartilhamento de seus resultados de mitigação de emissões excedentes. Esses instrumentos incluem a possibilidade de acordos bilaterais para compartilhamento de resultados de mitigação e transferência de tecnologia e financiamento para mitigação, que podem acelerar as trajetórias de descarbonização nos países hospedeiros de projetos. É possível por meio deles inclusive conectar sistemas de comércio de emissões domésticos entre dois países.

Agora com as regras aprovadas na COP 29, os mercados do Acordo de Paris oferecem mais segurança jurídica para todos os envolvidos, inclusive para atores privados, que também poderão participar, seja por meio de projetos registrados no novo Mecanismo de Crédito do Acordo de Paris (PACM), seja por meio de acordos de cooperação para emissão de Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos (ITMOs).
Cada vez mais, atores do mercado voluntário de carbono buscam se alinhar com as melhores práticas internacionais, e adquirir créditos de carbono provenientes do Acordo de Paris como ITMOs é uma forma de tentar imprimir mais garantias sobre a integridade e credibilidade dos créditos para o mercado.
Mas é claro que esses elementos externos adicionam complexidades e incertezas a mercados regulados. Como a oferta e demanda do mercado voluntário de carbono afetam os sistemas regulados do SBCE e do Acordo de Paris?
Permitir um amplo uso de créditos de carbono do mercado voluntário dentro do SBCE pode se refletir na precificação dos ativos, pois a disponibilidade ilimitada dos créditos de carbono (enquanto as permissões de carbono disponíveis são limitadas pelo “cap”) reduz a escassez necessária para induzir aumento do preço do carbono. Com preços mais baixos, as empresas podem optar por continuar comprando permissões ou créditos de carbono para conciliar suas emissões, em vez de promover reduções de emissões diretas.
E como garantir que os acordos de cooperação de ITMOs não vão prejudicar o cumprimento das NDCs dos países hospedeiros, que podem acabar vendendo resultados de mitigação que seriam necessários para cumprir suas próprias metas? Ou então, como garantir que países hospedeiros não vão deliberadamente apresentar metas pouco ambiciosas, para poder garantir que terão excedentes de resultado de mitigação para vender? Minha colega em Londres já dizia que o problema dos mercados de carbono são esses inúmeros riscos de incentivos perversos, que podem atrapalhar o atingimento dos resultados ambientais.
E sobre isso ela estava certa. Mercados de carbono não estão livres de influências políticas, como ficou evidente durante todo o processo legislativo da Lei do SBCE, resultando em uma lei cheia de “jabutis” para agradar a todos os atores envolvidos. E, em um ambiente que favoreça a escalabilidade dos projetos de carbono no Brasil, haja Ministério Público para intervir em defesa dos povos originários e comunidades tradicionais guardiãs de terras cheias de riquezas do capital natural do carbono brasileiro. O pacote de regulamentação do SBCE precisa ser bastante assertivo para eliminar interpretações distorcidas, evitar desvios de finalidade na interação com os mercados voluntários de carbono e reforçar as salvaguardas socioambientais de projetos de carbono, naquilo que lhe couber.
Nesse sentido, aqui existe uma oportunidade de engajar setores não regulados, para que o SBCE possa também contribuir para a redução de emissões relacionadas a outras fontes relevantes no Brasil, como uso da terra e desmatamento. Estudos mostram que, ao ampliar o sinal de preço do carbono para setores não abrangidos, o uso de créditos de carbono em sistemas de comércio de emissões pode gerar mais incentivos para redução de emissões, estimulando aprendizado fora do sistema, aumentando as oportunidades de mitigação e reduzindo os custos de conformidade.
Muita gente me confunde como uma entusiasta pró-mercado. Sim, na discussão “tributo ou mercado de carbono”, minha posição foi pelo segundo. Mas a verdade é que sou entusiasta da regulação do carbono.
Não haverá descarbonização da economia sem a mão do Estado, e precisamos de um Estado competente e proativo nessa gestão. Acredito na intervenção estatal para estabelecer objetivos ambientais e guiar o gerenciamento de externalidades ambientais entre os agentes econômicos por meio de ambientes regulados favoráveis, sujeitos ao controle da lei, com previsibilidade, transparência, fiscalização e escrutínio, e protegendo vulneráveis no processo. E o que sempre me encantou nos sistemas de comércio de emissões é justamente essa sofisticação de uma política pública transversal e capaz de combinar elementos de comando e controle com instrumentos econômicos para promover um resultado ambiental.
Enquanto é positivo que já tenhamos no Acordo de Paris um “sistema regulado internacional”, o fato é que até o momento esse sistema não vinha funcionando. As NDCs apresentadas pelos países não só são insuficientes para reduzir emissões, como ainda resultam (pasmem) em um aumento de 0.8% nas emissões de 2030 em relação a 2019, como apontou o Relatório Síntese de NDCs da UNFCCC em novembro de 2024. O Balanço Global do Acordo de Paris de 2022 e seu objetivo de “transição para longe dos combustíveis fósseis” foi um compromisso frágil e até o momento sem apetite político para implementação. Graças à regulação dos instrumentos de mercado de carbono do Artigo 6 agora na COP 29, esse cenário pode mudar. Combinar regulação com instrumentos econômicos talvez seja o reforço que faltava, um novo movimento capaz de mudar o jogo.
Talvez minha colega estivesse certa e esta história acabe de outra forma, com a constatação de que mercados de carbono não são uma boa solução para o problema do clima. Mas quando vejo governos estabelecendo leis, orçamentos de carbono, regramentos multilaterais e sistemas altamente regulados e interoperáveis para reduzir emissões de GEE por meio de instrumentos econômicos, não posso conter o entusiasmo de que esse é o melhor caminho que temos no momento para se lidar com essa crise. Se vai funcionar, só o futuro dirá. A sorte está lançada, mas pelo menos sob a égide do Estado de Direito e com amplo escrutínio público.
Caroline Prolo é advogada especialista em mercados de carbono
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Caroline Prolo
Arte sobre foto Divulgação

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