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Corpos reais no mundo real. Cadê a variedade?

Corpos reais no mundo real. Cadê a variedade?

Corpos reais no mundo real. Cadê a variedade?

Corpos reais no mundo real. Cadê a variedade?

Não há zero mais poderoso para nós que trabalhamos pela transformação do protótipo do mundo do que checar a teoria na verdade do dia a dia. Uma vez que sempre digo, sustentabilidade é sobre mudança de lógica, onde os fatores ambientais, sociais e de governança ganham o mesmo peso e relevância que os econômicos.

Mas essa checagem da verdade pode ser um balde de chuva fria no extremo inverno. Foi o que ocorreu comigo quando fui fazer um bate-papo com uma turma de gradução em gestão de uma universidade no ano pretérito. Era uma instituição para alunos de subida renda, instalada num dos bairros mais “transados” de São Paulo.

Cheguei cedo e fui tomar moca na lanchonete. Olhei ao volta, procurando entender aquele envolvente que não frequento muito. Fiquei impressionada. Praticamente todas as garotas eram magras, com cabelo liso e extenso e loiras. O vestuário também pouco variava, com peças que evidenciavam silhuetas saradas. Meu primeiro pensamento foi: cadê a variedade? Onde estão as pessoas reais, as gordas, baixas, negras, com cabelos crespos ou curtos…? Me senti voltando aos tempos da minha graduação, nos anos 80, quando esse era o padrão esperado, estimulado, desejado e cultuado.

Comecei portanto a pesquisar para tentar compreender essa clara incoerência entre a teoria (que propago, porquê profissional de sustentabilidade) e a prática. Foi quando me deparei com a material “G é o novo P”, de Nathália Geraldo, para a revista Marie Claire de setembro de 2024, onde foi disposto que a cultura da magreza está novamente influenciando a indústria da tendência. Esse testemunho da consultora de estilo Amanda Souza me marcou: “O estilismo trouxe a magreza para tendência, desde a dezena de 1910 e, a partir daí, porquê mulheres, estamos em uma corrida para ‘caber nas roupas’. Hoje, há uma volta da venustidade que machuca, que marcou tanto os anos 2000. Justamente quando o movimento pela procura do que era real estava maior. Acontece que, há mais de 15 anos, a discussão da pressão estética avança duas casas e retrocede uma; nos últimos cinco, avançamos três e retrocedemos duas”.

Logo é isso? Estamos voltando várias casas no jogo de um mundo mais respeitoso, igualitário, com menos padrões sufocantes que nos colocam contra a parede e reavivam inseguranças e medos contra os quais lutamos tanto para nos livrar? Sim, eu sei que a passeio rumo a um novo protótipo de mundo não se faz em risco reta, mas constatar que a cultura da magreza voltou com tudo em meio a tantos movimentos públicos de “corpos reais” me tira um pouco o ânimo.

Minhas leituras me levaram ainda a uma material na Você RH de março desse ano divulgando o livro “Discriminação Estética”, escrito por cinco advogados do Recta Antidiscriminatório sobre porquê a imposição de padrões de venustidade é fator de exclusão no envolvente profissional. Lembrei dos antigos anúncios de tarefa que tinham porquê critério “boa figura”.

A material informa que “um estudo de Daniel Hamermesh, economista especializado em mercado de trabalho, apontou que, nos Estados Unidos, pessoas mais atraentes ganham, em média, R$ 1,2 milhão a mais ao longo da vida que seus pares menos bonitos, ainda que também qualificados”. Por trás desse oferecido, há uma assunção implícita do que é ser “bonito”. Bonito para quem, segundo que critério?, me pergunto em meio a tantos pensamentos.

Na contramão desse cenário, que bom, nos últimos anos as empresas vêm tomando atitudes importantes para serem mais inclusivas. Há alguns anos, Unilever e Farmacêutico anunciaram que retirariam dos catálogos de seus produtos os termos “normal” e “perfeito”. Já a farmacêutica Eli Lilly, por ocasião da entrega do Oscar do ano pretérito, lançou o filme publicitário “Big Night”, onde reafirmava – vejam só – o óbvio: que seus medicamentos para emagrecer eram destinados a pessoas obesas. A chamada era: “Medicamentos para obesidade não são para uma noite. São para a saúde”. A necessária peça foi lançada porquê resposta a falas na entrega do Oscar sobre atrizes, atores e celebridades estarem magros em função da “pílula mágica”. O mercantil termina com essa mensagem: “Pessoas cuja saúde é afetada pela obesidade são a razão pela qual trabalhamos com esses medicamentos. Importa quem os toma”.

Por isso sabor tanto de atuar com o setor privado. O poder de influência de uma grande empresa é gigante. Quando muito conduzidas, provocam mudanças profundas na sociedade, seja por meio de seus processos de seleção, políticas de marketing, relacionamento com clientes etc. E precisamos muito disso.

Outro vestimenta que me gerou perplexidade foi a reação a um post laudativo que fiz ao Laboratório Fleury, que em seus painéis de senha usa o tratamento “Caras clientes e caros clientes…”. Me senti incluída ao ler isso. Não sou “custoso”, apesar da nossa gramática permitir. Essa postagem alcançou mais de 78 milénio impressões. E muitos comentários. A maioria questionava a medida. Alguns exemplos: “Vejo a vida mais simples. Não sei a premência de complicar tanto criando lados opostos”, “Se ‘todos’ engloba os dois gêneros, é desnecessário, pura mídia”, “As pessoas fazem questão de cada coisa desnecessária…”. Respondi às manifestações destacando a relevância de respeitarmos as diferentes opiniões.

As paixões que meu post despertou falam por si: ainda estamos longe da tão propagada variedade, isenção e inclusão. Mas, por quê? A melhor explicação para isso eu ouvi em uma reunião com uma organização financeira internacional. Conversando sobre os recentes retrocessos e ataques a essa agenda (antes até da posse de Trump, em janeiro), a funcionária brasileira, profissional que saudação e que trabalha na sede em Washinton, me disse: “Os movimentos que vimos eclodirem nos últimos anos não provocaram mudanças estruturais. Muito se falou e até se fez, mas sem conseguir mudar as bases. Assim, quando começaram os questionamentos à variedade, não houve exatamente um retrocesso; foi somente a verdade ainda vigente que voltou à tona”. Fez sentido para mim. Bom… portanto sigamos fortes, trabalhando por mudanças estruturais que tornem nosso mundo, de vestimenta, mais diverso, gentil, humano e… real.

Sonia Consiglio é SDG Pioneer pelo Pacto Global da ONU e perito em Sustentabilidade.

sonia-consiglio Corpos reais no mundo real. Cadê a variedade?
Sonia Consiglio — Foto: Arte sobre foto de divulgação

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