Os juros, o inferno e a revisão do Código Social
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Há menos de um ano, com a promulgação da Lei 14.905, de junho de 2024, o país finalmente superou dúvidas e anacronismos persistentes quanto ao tratamento legítimo dos juros, que o assombravam desde pelo menos 1933, quando foi editada a chamada Lei da Usura (Decreto 22.626).
Mas a silêncio durou pouco. O Projeto de Lei 04/2025, que pretende reescrever boa secção Código Social, propõe desfazer os avanços da Lei 14.905. E se o projeto tem inúmeros defeitos, que vêm sendo apontados por professores e advogados de variadas áreas e visões, no tema dos juros ele se supera, em termos de dissonância sistemática e de danos potenciais à atividade econômica.
A Lei 14.905 seguiu a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, prestigiando a taxa de juros legais flutuante adotada em 2002 pelo Código Social (a Taxa Selic). Ou por outra, afastou limitações à liberdade das partes de contratar as taxas de juros – sem descurar dos casos de lesão, onerosidade excessiva e outros previstos em leis especiais.
Já o projeto de revisão do Código Social propõe uma guinada diretamente de volta ao pretérito: juros de mora em uma taxa fixa, de 1% ao mês, e o retorno da limitação da liberdade de estabelecer os juros em contratos. A lei do muito vencendo a malvada economia. Quase tão anacrônico quanto uma guerra tarifária global, mas sem ufania.
A proposta que, em tramitação conjunta, veio a se transformar na Lei 14.905, foi apresentada pelo Senador Rodrigo Pacheco, portanto Presidente do Senado, que afirmou: “a despeito do entendimento do STJ, que deveria dar a termo final sobre o tema, muitas decisões judiciais de instâncias inferiores adotam posicionamento divergente”. E concluiu: “já tarda que uma lei venha a pacificar tema tão importante para a segurança jurídica e para o envolvente de negócios nacionais”.
Pois muito: a solução não tarda mais, foi adotada na Lei 14.905. O que torna intrigante que o mesmo Senador Pacheco, menos de um ano depois, tenha afirmado, na justificação do projeto de revisão do Código Social, que “dúvidas insuperáveis” sobre “a redação do atual cláusula 406 do Código Social” “precisavam de enfrentamento”.
A justificação do projeto, quanto ao préstimo do tema, é constrangedoramente breve: a “segurança jurídica”. O que impõe formular a questão: em que medida ignorar a lógica econômica, que deve prevalecer quando se trata de estabelecer custos destinados a remunerar o capital não restituído ou emprestado, beneficia a “segurança jurídica”?
Um camarada economista fez troça: deve ser a segurança de um operação aritmético mais simples. Reagi revoltado: mesmo nós, advogados, somos capazes da subtração que a Lei 14.905 nos impõe, para calcular os juros. Basta descontar da variação da Taxa Selic a variação do IPCA no mesmo período. Um percentual menos o outro e pronto, temos a taxa de juros – com a vantagem de que, se o resultado for negativo, é tratado porquê zero.
A verdade é que a proposta de adoção de uma taxa fixa não se sustenta no préstimo. Ao utilizar por cá uma taxa flutuante, porquê ocorre nas outras jurisdições, a lei permite que as estimativas de elevação e redução da inflação – capturadas pela Selic – sejam refletidas no incremento da dívida durante o período de incidência dos juros, evitando o enriquecimento sem justificação do credor ou do devedor.
Taxas prefixadas, por sua própria natureza, exclusivamente acidentalmente coincidem com a efetiva perda de poder de compra da moeda, acrescida de um prêmio. As partes devem ser livres para passar esse risco, mas quando se trata de juros impostos pela lei, deve-se buscar a maior coincidência provável entre a taxa real e a imposta pelo legislador.
Por isso o Código Social optou pela Selic. E com a Lei 14.905 o protótipo foi apropriado às normas brasileiras que impõem correção monetária: quando da emprego da Selic ela é deduzida da inflação ocorrida, revelando os juros efetivos.
Não para por aí. A Lei 14.905 também unificou o tratamento dos juros no Brasil, que era restritivo para quase todo mundo, mas livre para as instituições financeiras. Ao fazê-lo, combateu o incentivo sintético à intermediação e aos custos que ela acarreta.
Nesse ponto, o projeto de revisão do Código Social é caótico: limita os juros de mora a 24% ao ano, mas esquece que a Lei 14.905 liberou a estipulação de juros compensatório nos contratos de reciprocamente.
Na prática, os juros de mora poderiam ser menores que os juros contratados para o período anterior ao vencimento. Ou seja: o devedor que não remunerar pode ser premiado com uma redução da taxa, se os juros contratados forem superiores a 24% ao ano.
As leis, porquê o inferno, estão cheias de boas intenções. Mas pouco importa se esse é, ou não, o caso da proposta de taxas de juros fixas e restrição à liberdade de contratar sobre elas, incluídas no projeto de revisão do Código Social: o melhor para o país é rejeitá-las.
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